A nova série da Netflix, Girl Boss, tem mais problemas do que parece e tudo começa com a personagem principal e em quem ela foi “inspirada”.
Se você ama moda ou está inserida nesse meio de alguma forma, com certeza já ouviu falar de Sophia Amoruso e da sua marca, a Nasty Gal. Quem é do mercado, ou lê e estuda sobre moda, costuma se dividir em dois grupos: os que admiram a trajetória da conhecida garota-chefe e os que criticam todas as bases sobre as quais foram construídas o tal império de Sophia. Por isso, quando vimos que a Netflix lançaria uma série inspirada no, também famosíssimo, livro autobiográfico de Sophia, o Girl Boss, sabíamos que com ela viria uma sequência de discussões sobre a história.
Para a nossa surpresa, as discussões aconteceram sim, mas sob óticas inesperadas. Tudo bem, poderíamos prever que haveria um monte de discordâncias a respeito das diferenças entre o livro e a série, assim como era previsível que a personalidade de Sophia – mimada, arrogante, mal educada, desrespeitosa – incomodaria parte da audiência. Mas e a discussão sobre construir um império sem o menor senso de moral e ética? E a discussão sobre a posição privilegiada na sociedade que a permitiu roubar, explorar, se irresponsável e ainda ser admirada pelas consequências de sua atitude? Já deu de romantizar e normalizar comportamentos repreensíveis, não acham?
a falta de ética de Sophia Amoruso e como nasceu a Nasty Gal
A Nasty Gal nasceu quando Sophia entendeu o poder do styling. Ou seja, Sophia aprendeu que pegando qualquer peça de roupa e colocando-a em um novo contexto poderia agregar um valor antes invisível para aquela roupa. Ela tinha as habilidades criativas e o bom gosto para fazer isso com sucesso, e assim foi de alguém que fazia algum dinheiro vendendo roupas de segunda mão, para a criadora de uma marca que, bem, fazia a mesma coisa. Em pouco tempo, ela virava a garota-chefe, o exemplo de girl boss (termo hoje repetido à exaustão para falar de mulheres que ocupam cargos altos em empresas).
Na história da Nasty Gal, você acha “episódios” como ela e a sócia comprando roupas em Chinatown, dando volta em fornecedores, para revender em seu já estabelecido site-império por preços absurdamente altos. Em Girl Boss, tem episódios em que Sophia rouba peças para revender. A verdade é que Sophia constrói a admiradíssima Nasty Gal fazendo todo mundo de trouxa: compradores, vendedores, sócios, funcionários… E se você está pensando que “essa é a lógica capitalista”, saiba que não é bem assim que funciona.
Aliás, essa é o mesmo pensamento de quem compra roupas na 25 de março e revende em lojas de shopping por preços altíssimos – e que todo mundo faz questão de criticar de forma ferrenha sempre que pode.
Sophia sofre de falta de ética e de caráter, ignora que para a construção de um negócio existe uma lógica empreendedora, um processo de crescimento e pelo menos alguma responsabilidade. Ela se comporta como um ser superior e como alguém que merece não seguir qualquer regra simplesmente por ser quem é. Esse tipo de pessoa não deveria ser admirada. Nunca.
o privilégio e a normalização de comportamentos absurdos
Olha gente, ser rebelde sem causa não é cool – ainda mais quando tem tanta causa por aí pra gente se envolver. Também não é cool roubar, não é cool tirar vantagem dos outros, não é cool fazer pouco da trajetória das outras pessoas só porque você discorda daquilo. A gente sempre fala por aqui, quando escrevemos sobre séries, que adoramos ver personagens mulheres que fogem do padrão “boazinha”, mas algumas personagens como a de Sophia Amoruso na série Girl Boss, são extremamente perigosas.
O perigo está na normalização e até romantização de comportamentos repreensíveis. Teve muita gente que não quis entrar no mérito de Sophia ser uma garota branca e rica, porque é como se disséssemos que pessoas que gozam desse privilégio não fossem capazes de ter problemas. Mas não é bem isso. É preciso sim lembrar que a personagem/criadora da Nasty Gal é uma garota branca e rica, porque muitos dos comportamentos dela são perdoados por causa dessa posição privilegiada que ela ocupa. Se Sophia fosse negra/pobre e fosse pega roubando, é provável que sofreria as consequências do que fez. Como uma mulher branca/rica, ela ganha passe livre pois “ah, é apenas uma jovem sendo rebelde”.
Outro comportamento normalizado e aceito de Sophia na série da Netflix é a sua recusa ao amadurecimento. Nas próprias chamadas da séries, podemos ver a vida adulta sendo chamada de “o lugar onde sonhos vão para morrer”. O personagem de Sophia em Girl Boss afirma o tempo todo, com atitudes detestáveis, o extremo desprezo que tem pelos aspectos básicos da vida adulta como responsabilidade e ter que lidar com as consequências dos próprios atos.
No fim, a gente entende muito bem que nem toda série, livro ou filme tem o papel de provocar grandes insights ou de apresentar personagens como grandes exemplos. A gente sabe que muita produção de conteúdo tem o objetivo único de ser uma opção de entretenimento e não se propõe a ensinar nada a ninguém.
O problema é que hoje em dia, a produção audiovisual é sim uma grande fonte de exemplos de comportamento, principalmente quando estamos contando uma história sobre alguém que existe e principalmente para uma geração mais jovem – que acaba vendo em personagens como Sophia Amoruso uma carta branca para ser meio babaca e passar por cima dos outros, com a desculpa de que está apenas sendo criativo.
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